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2ª parte: Introdução

 

De como se constrói (trabalho conjunto, mãos à obra), de como se destrói (o sambista verdadeiro como coadjuvante massa falida).  Debates, entrevistas e depoimentos de grandes compositores das Escolas, atualmente afastados por discordarem de uma série de coisas.  Aqui esclarecidas.  Gente como Nélson Sargento, Paulinho da Viola, Candeia, Elton Medeiros e Carlos Elias.  As Escolas de Samba, ainda a nossa maior manifestação popular urbana, sofrendo uma profunda invasão e vivendo a maior crise de sua história porque se descobriu, há algum tempo, que samba dá muito dinheiro.  Neste Suplemento, os sambistas contam porque protestam e porque amam o samba.  Protestam porque amam.  Embora os depoimentos e entrevistas limitem-se às Escolas (seus problemas, sua estrutura, suas características, sua evolução, suas deformações), eles estão intimamente ligados a um assunto maior e mais abrangente: a cultura popular em face de suas transformações.

 

 

 

SUPLEMENTO ESPECIAL CORREIO BRAZILIENSE

Domingo, 22 de janeiro de 1978.

 

 

ESCOLAS DE SAMBA, CULTURA POPULAR.

 

 

         As Escolas de Samba começaram a viver sua atual crise quando o sambista, para quem a Escola é uma casa, o único lugar onde ele pode se realizar totalmente, começou a perder a voz ativa, a iniciativa, sendo substituído por profissionais (senógrafos (sic), coreógrafos, etc,) de classe média, que interferiram num processo de cultura popular altamente característico.  O repórter João Bosco Rabello passou 10 dias no Rio e trouxe 20 horas de material gravado, resumidos nesta edição.  O papo foi na casa de Candeia, pras bandas de Jacarepaguá.  Muita cerveja e uma madrugada toda em claro.  Presentes Paulinho da Viola, Carlos Elias e um gravador num canto da sala, esquecido, mas ligado, registrando fielmente o que foi dito.  Participando da conversa, o jornalista do Rio Ruy Fabiano e João Bosco Rabello do Correio Braziliense,este último com exclusividade sobre o material.  No fim, um saldo positivo: algo que vira um importante documento do samba.

 

 

O MOTIVO

 

         Transformadas em centro de atenções do carnaval carioca, as escolas de samba atravessam a mais séria crise de sua história, iniciada em agosto de 1928, com a fundação de Deixa Falar, por um grupo de sambistas do Estácio.  O que inicialmente era apenas uma comunidade com a finalidade única de cantar sambas e brincar os carnavais, uma forma barata de diversão, acabou envolvida com o crescimento da cidade, pela indústria do turismo e suas conseqüentes implicações.  Hoje, elas enfrentam este incômodo dilema: reagir contra a crescente descaracterização – que entre outras coisas colocou o sambista como um elemento decorativo dentro da escola – ou assumir de vez a carapuça de máquina de fazer dinheiro, que já provocou até o apelido de Escolas de Samba S/A.

 

         Este ano, as costumeiras discussões que antecedem o carnaval foram precipitadas por um fato que acentuou mais ainda as correntes que disputam a liderança nas escolas: a escolha do samba-enredo da dupla Jair Amorim/Evaldo Gouveia para representar a Portela.  Compositores de ligação recente e discutível com o universo das escolas de samba, (Evaldo Gouveia, por exemplo, declarou não gostar de carnaval e aproveitar os feriados para descansar em um afastado sítio) tiveram seu samba-enredo indicado pela direção da escola, apesar dos protestos gerais, dos mais expressivos compositores da escola.  Mas a reação não foi menos violenta: Paulinho da Viola, Clara Nunes, Candeia e Monarco, nomes dos mais conhecidos da agremiação de Oswaldo Cruz, são apenas alguns dos que não se conformam com o fato e, a protesto não desfilarão este ano.

 

         Porém, o recente episódio da Portela, reflete a gravidade da crise das escolas de samba.  Para muitos, talvez a maioria, trata-se apenas de um acontecimento isolado, restrito ao âmbito da famosa escola de Madureira, quando a verdade é muito mais ampla e complexa.  A verdade trata do esmagamento de uma cultura popular por elementos estranhos a essa cultura, uns na ambição desmedida de faturamento e outros ávidos de promoção pessoal e profissional.  Esse processo não é de hoje que se vem desenrolando, pois, já em 1946, Cartola se afastava de Mangueira, escola que fundou, por um desentendimento com Hermes Rodrigues, que tentava fazer campanha eleitoral através da verde e rosa usando os sambistas e o prestígio da Mangueira.  Muitos fatos antecederam esse processo massacrante de deformação dos valores culturais das comunidades de samba, mas ele será mais facilmente compreendido a partir de depoimentos valiosos como o do compositor Nelson Sargento, de uma memória invejável e um vasto currículo dentro do samba, além de uma participação as suas mais importantes na história da Mangueira.  Mas Nelson é uma figura à parte, de uma riqueza interior belíssima e de uma força de espírito rara, qualidades que aliadas ao seu talento de compositor, pintor (de quadros e paredes) e convivências com Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Alfredo Português, Cartola e outros, lhe conferem uma indiscutível autoridade para falar do assunto.

 

         Sobre Candeia, outra grande expressão do samba e que também participa dessa edição especial do CB, juntamente com Paulinho da Viola e Carlos Elias, há muito pouco o que falar, pois é figura que dispensa comentários.  Filho da Portela, como o classificam alguns, Candeia há muito se bate numa luta desigual, tentando desmascarar a grande farsa armada em torno das escolas, pelas empresas de turismo, com a cumplicidade da própria Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, cujo presidente Amaury Jório, defende literalmente o princípio de Escolas de Samba S/A Candeia abriu uma alternativa para os sambistas: o Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo, que deve ser entendida exatamente como uma alternativa e não como uma antítese, no dizer de Paulinho da Viola.  A propósito, Paulinho trava com Carlos Elias e Candeia, uma discussão sobre a situação das escolas de samba em nossos dias, num papo que começou por volta das dez horas da noite e só foi terminar pelas 6 da manhã seguinte, com muita cerveja e muita descontração.  Esse papo está reproduzido na íntegra e, com exclusividade nesta edição e já pode ser considerado como um documento da maior importância, um registro que certamente deve ser levando em conta, principalmente pelos sambistas, alvos principais do trabalho desses compositores.

 

         Outra figura que comparece com o seu esclarecimento de igual valor é o  compositor Elton Medeiros, que a exemplo de Paulinho (por sinal seu parceiro) e de Candeia, Carlos Elias e Nelson Sargento, é também um estudioso do assunto e sempre preocupado em manter “acesa a chama” (isso é verso de Paulinho) de uma formação cultural de um povo, manifestada de diversas formas, mas que tem na escola de samba, talvez, a usa mais forte raiz.

 

         Disso tudo, resumidamente, podemos contar com esclarecimentos preciosos, como o batismo da Portela por uma Yalorixá africana; a exploração do mito de Natal, por elementos invasores e principais responsáveis pela deturpação e inversão dos valores dessa cultura; a existência de uma frente interessada em apagar a memória até da história do país; a omissão de determinados setores oficiais com relação ao problema; a ausência do sambista na AESERJ, que deveria ser a entidade mais interessada na defesa de seus direitos, mas que exerce papel inteiramente oposto; a imposição do nome Portela, por um delegado de polícia e, uma série de outras denúncias que precisam chegar ao público e à consciência de cada um.  O problema é mais grave na medida em que se observa, hoje, uma deformação a tal nível nas escolas de samba, que fica mesmo difícil, praticamente impossível, entender uma cultura de raiz e até vislumbrar os horizontes de suas verdades, seus hábitos e o comportamento interno das mais tradicionais agremiações do Rio de Janeiro.

 

         A abordagem que deveria ser feita, o que deveria ser dito, e até opiniões sobre a edição deste caderno, bem como a sua validade ou  não, tudo isso, foi longamente discutido por Paulinho da Viola, Candeia, Nélson Sargento e Elton Medeiros.  Claro que o assunto não foi abordado em toda a sua profundidade, pois para isso, seria preciso muito mais que algumas páginas de um jornal: seria necessária uma longa e dedicada pesquisa, cujo resultado teria de ser publicado em um livro.  Ma, dentro do espaço que tínhamos, procuramos colocar uma visão sincera do sambista com relação a todo este processo comercial.

 

          Deve ser destacada ainda a importante presença do jornalista carioca Ruy Fabiano, que participou da noitada em casa de Candeia e do papo com Nélson Sargento, além de troca de sugestões e de idéias mantidas com ele, de fundamental importância para esta publicação.

 

          As fotografias de todo este caderno foram feitas em épocas diferentes, parte delas na Avenida Presidente Vargas, com a participação do próprio Paulinho da Viola, no carnaval passado.  Publicamos também, uma foto inédita tirada por Paulinho, na concentração da escola, focalizando Beki Klabin e um autêntico passista de escola de samba em primeiro plano.  Outro documento inédito fornecido por Paulinho e Candeia, com exclusividade e publicado na íntegra, é um trabalho de André Motta Lima, Candeia, Paulinho e Cláudio Pinheiro, entregue em 1974 ao presidente da Portela, Carlinhos Maracanã, relatando os desejos dos membros da comunidade e tecendo críticas que consideraram construtivas para a escola.

 

João Bosco Rabello

 

 


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